Quais São as Quatro Fases do Desejo Primordial na Criação?
No "Prefácio à Sabedoria da Cabalá”, Baal HaSulam divide o início da Criação em cinco etapas e uma restrição, mas podemos reuni-las em três grupos. Pense nos dois primeiros grupos como sendo um carro e o combustível para seu motor e imagine que o terceiro grupo é o motorista.
O primeiro grupo contém apenas o Estágio Zero, a Raiz. Esse é o desejo de doar, a energia que cria e sustenta o carro chamado "Criação".
O segundo grupo ─ Estágios Um e Dois ─ constrói uma "plataforma" para a evolução. Esse é o próprio carro. Em certo sentido, a plataforma que os dois estágios construíram se assemelha ao que Richard Dawkins descreveu em O Gene Egoísta como "A sopa primeva", o substrato oceânico que continha os ingredientes para o início da vida.
O terceiro grupo ─ Estágios Três e Quatro ─ é "o motorista". Sua função é ligar o motor de evolução ─ a interação entre os desejos. Como explicaremos abaixo e no próximo capítulo, a restrição é a roda pela qual a criação é impulsionada em direção a seu propósito: descobrir o Pensamento da Criação.
Fases Zero e Um
Em termos Cabalísticos, a existência do desejo de doar sem o desejo de receber é chamado “Estágio Raiz” ou “Estágio Zero”. O Estágio Raiz é imediatamente seguido por seu ramo obrigatório ─ “Estágio Um” ─, o desejo de receber, que está permeado com a abundância fornecida a ele pela Raiz, o desejo de doar.
Como resultado, nenhum elemento da existência, de partículas subatômicas a galáxias em expansão no universo, escapa do “binômio” dar–receber. Isso pode aparecer na forma de quente vs. frio, seco vs. molhado, pequeno vs. grande, centrífugo vs. centrípeto, energia vs. matéria, etc., mas todos derivam dos opostos primordiais: dar e receber.
Fase Dois
O resultado do encontro entre os dois desejos no Estágio Um é o Estágio Dois. Aqui a interação real entre esses dois desejos realmente acontece. Para entender a mudança que ocorre entre o Estágio Um e o Estágio Dois, considere a admiração de uma criança por seus pais. Devido ao fato de que as crianças, especialmente no princípio da infância, idolatram os pais, elas se esforçam em imitá-los. Elas observam cada movimento dos pais atentamente (a tendência é os meninos observarem o pai e as meninas observarem a mãe), elas “estudam” o comportamento de seus pais e tentam seguir-lhes o exemplo.
Estudos contemporâneos mostram como as crianças estão atentas à orientação de seus pais.
Além disso, o best-seller do Dr. Benjamin Spock, Cuidados com o Bebê e a Criança, dirigido aos pais, fornece uma descrição tão completa desse processo, que me sinto obrigado a apresentá-lo aqui praticamente na íntegra:
“A identificação é muito mais importante do que brincar. É assim que o caráter é construído. Depende mais do que as crianças percebem em seus pais e modelam em si mesmas depois, do que daquilo que os pais tentam ensinar-lhes em palavras. Essa é a forma como ideais e atitudes básicos das crianças são estabelecidos ─ para com o trabalho, para com as pessoas, para consigo mesmas (...) É assim que elas aprendem a ser o tipo de pais que serão daqui a vinte anos, como se pode prever ao se ver a forma carinhosa ou ao ouvir suas repreensões quando brincam com suas bonecas.”
E assim como uma criança deseja crescer para ser como seu pai, a Segunda Fase na evolução do desejo é uma expressão da vontade do desejo de receber (Estágio Um) de ser como seus pais ─ o desejo de doar (a Raiz). Isso acontece porque o desejo de receber ─ o "fruto" do desejo de dar ─ do Estágio Um reconhece a superioridade da Raiz e deseja ser como o seu progenitor. E porque o único exemplo que o Estágio Um recebe da Raiz é o de dar, no Estágio Dois o desejo de receber começa a querer doar também.
Anteriormente dissemos que a base da existência são formas do desejo de receber, criadas pelas interações com seu criador ─ o desejo de dar. Assim, a partir de duas reações naturais e "automáticas" à doação, dois desejos opostos emergem: receber (no Estágio Um) e doar (no Estágio Dois). As várias combinações desses dois desejos formam a base de cada objeto, cada acontecimento e toda evolução que ocorre em nosso mundo, inclusive nós ─ nossos corpos, nossos pensamentos e nossas ações.
Assim como uma criança deseja se tornar seu modelo parental, na raiz do desejo de dar no Estágio Dois encontra-se o desejo de receber o status superior do progenitor, poder e conhecimento. Em outras palavras, a Segunda Fase é o desejo de receber o status e a natureza da doação. Por essa razão, é melhor imaginar o Estágio Dois como um vaso (desejo de receber) que quer doar, ou "vaso de doação". Por isso, a seta que designa esse desejo aponta para fora, em direção ao Criador.
O Estágio Dois, porém, é mais que um novo desejo. Ao querer doar, o Estágio Dois é admitido em um novo estado de ser. Como não deseja mais receber, mas doar, necessita de alguém a quem doar. Assim, para ser como seu criador – um doador – o Estágio Dois deve agir positiva e favoravelmente em relação aos outros.
Por essa razão, o Estágio Dois, a força que nos compele a doar apesar de nosso desejo subjacente de receber, é a força que torna a vida possível. Sem ela, os pais não teriam filhos (a quem pudessem doar), nem se importariam com eles assim que nascessem; a vida não seria possível.
De fato, o melhor exemplo do Estágio Dois é o amor da mãe por seu filho. Quando consideramos o amor infinito, a compaixão e o esforço das mães na criação de seus bebês, sentimos reverência e nos admiramos de que tamanha devoção seja mesmo possível. E ainda, quando olhamos para o rosto de uma mãe enquanto ela amamenta, troca fraldas ou banha o bebê, vemos que frequentemente está radiante. Por que isso acontece? O que dá às mães a habilidade de não apenas suportar tamanha tensão, mas desejar e sentir prazer nisso?
A resposta é simples e toda mãe a conhece instintivamente: ao se doar a seu bebê, ela experimenta imensa alegria. Há um desejo de receber o prazer da maternidade (ou paternidade) por trás de cada decisão de trazer uma nova vida ao mundo. Sem isso, as pessoas não teriam bebês, a não ser por engano, e isso seria péssimo para as crianças.
Fase Três
Como Ashlag afirmou, a evolução dos desejos, que pendem por causa e efeito, é obrigatória, aderindo a regras fixas e determinadas. O próximo passo obrigatório para o Estágio Dois é começar a doar, por ser isso o que ele quer fazer. No Estágio Dois, porém, o desejo que recém criou o desejo de doar tem um problema para resolver: ele quer doar, mas tudo o que existe além de si mesmo (o desejo de receber com suas duas etapas) é o desejo de doar que o criou. Consequentemente, a única coisa que o Estágio Dois pode dar a seu criador é sua vontade de receber. Em outras palavras, ele irá receber, assim como no Estágio Um, mas com a intenção de dar prazer à Raiz, ou seja, ao criador. Esse modus operandi "invertido", em que o ato é recepção, mas a intenção é doação, é um conceito completamente novo e, portanto, merece um novo nome ─ "Estágio Três".
Pode parecer estranho para alguns, mas nós aplicamos esse modo de ação rotineiramente em nossos relacionamentos. Pense em um jovem que vem visitar sua mãe após não vê-la por um longo tempo. É bastante provável que a mãe queira preparar algo para seu filho querido comer. E se o filho não estiver com fome? Ele não vai comer? Na maioria dos casos, ele vai comer e expressar seu prazer pela comida simplesmente para agradar à mãe.
Nesse caso, o filho não está focado em seu próprio prazer, mas no prazer da mãe em vê-lo comer. No “Prefácio à Sabedoria da Cabalá”, Baal HaSulam descreve esse modo de trabalho como uso parcial do desejo de receber, apenas o mínimo necessário para a recepção do prazer, mantendo o centro de atenção no prazer do doador pela aceitação do recebedor. Em nosso exemplo culinário, o filho deve ter algum apetite ou não será capaz de comer. Seu apetite, entretanto, pode não ser grande o suficiente para mudar sua intenção (ou atenção) de agradar a sua mãe para agradar a si mesmo.
Fase Quatro
Quando o apetite do filho é leve o suficiente para ser subordinado a seu desejo de agradar a sua mãe, ele pode se concentrar em sua intenção de agradar, ao invés de em seu estômago. E se ele estivesse com muita fome e não tivesse comido o dia todo? Será que ele ainda seria capaz de ignorar o seu estômago roncando, se concentrar apenas no prazer de sua mãe e comer apenas para agradar a ela? Quando o Estágio Três começa a receber porque deseja agradar à Raiz, ele percebe que, quanto mais recebe, mais agrada a seu criador, a Raiz.
Em consequência, começa a querer receber mais e mais e mais. Finalmente, gostaria de receber tudo, assim como no Estágio Um, despertando, desse modo, todos os seus desejos de receber. Esse autoevocado desejo total de receber é chamado "Estágio Quatro".
Qual É a Diferença entre a Fase Um e a Fase Quatro?
Há, contudo, uma diferença fundamental entre o Estágio Um e o Estágio Quatro: a relação com o doador. O Estágio Um não se relaciona com o doador, apenas com a abundância. Assim que "percebe" que há o desejo de doar que o criou, o vaso quer ser como o doador, e isso inicia o Estágio Dois. O Estágio Quatro percebe não só a existência do doador, mas também a benevolência e a primazia do doador, uma vez que foi o desejo de doar que iniciou a criação. E sendo um completo desejo de receber, o Estágio Quatro almeja receber não apenas a abundância que o Estágio Um recebe, mas o status de primazia da Raiz.
Para receber esse status, no entanto, o Estágio Quatro deve ser semelhante ao Criador, e não o é. Ao contrário, é um desejo consciente de receber tudo ─ onipotência, onisciência e até mesmo a natureza do Criador. Menos do que isso estaria incompleto, já que não seria exatamente idêntico ao Criador. Isso é o que Ashlag quer dizer, quando escreve no "Prefácio à Sabedoria da Cabalá" que o Estágio Quatro pretende atingir o Pensamento da Criação.
Em outro ensaio, "A Entrega da Torá [Luz]", Ashlag oferece uma bela explicação sobre a natureza da relação Criador-criado que ocorre no início da Criação: "Essa questão é semelhante a um homem rico que diariamente cumulava um homem do mercado com ouro, prata e todas as coisas desejáveis. E a cada dia dava-lhe mais presentes do que no dia anterior. Finalmente, o homem rico perguntou: "Diga-me, todos os seus desejos foram satisfeitos?" Ele [o homem do mercado] respondeu: "Nem todos os meus desejos foram satisfeitos; quão bom e agradável seria se todos os bens e coisas preciosas tivessem vindo a mim por meu próprio trabalho, como elas vêm para você. Assim eu não estaria recebendo a caridade de suas mãos." O homem rico então lhe disse: "Nesse caso, nunca haverá uma pessoa capaz de satisfazer os seus desejos."
Assim, quando o Estágio Quatro percebe que não pode obter a primazia da Raiz, percebe que não pode receber tudo e que é inerentemente inferior a seu criador. Isso instantaneamente extingue qualquer sensação de prazer no Estágio Quatro e, apesar da infinita abundância que a Raiz fornece, o Estágio Quatro permanece com um sentimento de vazio, já que seu maior desejo não lhe foi concedido. Em Cabalá, quando o desejo do Estágio Quatro de ser igual a seu criador ofusca todos os outros prazeres, isso é chamado “restrição”. Como o desejo de ser igual ao Criador é muito maior do que os outros desejos, isso praticamente impede que o prazer seja experimentado.
Daqui para frente, a evolução se desdobra em um único e profundo propósito: possuir novamente a abundância que a Raiz deseja doar e que pode ser recebida apenas com a intenção de doar.
"Quais São as Quatro Fases de Desenvolvimento do Desejo Primordial na Criação?" é baseado no livro, Interesse-Próprio Vs. Altruísmo por Dr. Michael Laitman